América Central
19.04.2018
Intercâmbio entre quem cultiva alimentos em áreas secas do planeta
Delegação da ASA visitará campesinos/as na América Central a convite da FAO. Na bagagem, conhecimentos sobre a convivência com o Semiárido e experiências de construção de políticas públicas

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Por Verônica Pragana - Asacom

Mulheres que receberam representantes da ASA numa visita feita no início deste no Corredor Seco | Foto: Rafael Neves

Agricultores e agricultoras familiares de duas regiões do planeta atingidas por secas vão se encontrar para compartilhar experiências de produção de alimentos apesar das condições climáticas adversas. Seis agricultoras e sete agricultores saem do Semiárido brasileiro ao encontro de campesinos e campesinas que vivem no Corredor Seco da América Central. Nos dias 23 e 24 deste mês, os brasileiros visitam El Salvador; e de 25 a 27, a Guatemala. O intercâmbio é promovido pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), através do projeto Cooperação Sul-Sul para o manejo de recursos naturais e produtivos em zonas áridas e semiáridas no Corredor Seco da América Central.

Além de El Salvador e Guatemala, a região do Corredor Seco abrange também Honduras e Nicarágua e abriga mais de um milhão de famílias que vivem, principalmente, da agricultura. Em El Salvador e Honduras, cerca de 54% da sua população dependem do que plantam para comer e, na Guatemala, 67%. Segundo a FAO, os níveis de pobreza e desnutrição que afetam a população rural e as comunidades indígenas, no Corredor Seco, são alarmantes.

Cida e seu quintal produtivo no Sertão de Sergipe

Aparecida da Silva, 53 anos, é uma das agricultoras da delegação brasileira também composta por representantes técnicos e políticos da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). Cida, como é conhecida, parte da comunidade de Lagoa da Volta, a 16 quilômetros do centro do município sergipano de Porto da Folha (a 178,5 km da capital Aracaju). E leva consigo sua rica experiência de fundadora e gestora de um grupo de mulheres, criado há 15 anos e com atuação na área de criação de abelhas, cultivo de hortaliças, beneficiamento de frutas para fabricação de doces e multiplicação e estocagem de sementes crioulas. Cida está acostumada a receber visitas na sua propriedade desde 2012 quando conquistou a cisterna-calçadão, uma tecnologia que permite o acúmulo de água para produção de alimentos. “O que mais gosto nos intercâmbios é ver as experiências e saber como foram construídas. Sou muito curiosa”, confessa ela com um certo receio diante do espanhol falado pelos anfitriões.

Do município de Apodi, no Rio Grande do Norte, quem vai ao Corredor Seco é Agnaldo Fernandes, 32 anos, agricultor e sindicalista. “Estamos vivendo um momento oportuno para compartilhar a experiência de cuidar da água e da autonomia das famílias que romperam com a Indústria da Seca (lógica que concentrava a água para quem já tinha a posse das terras e que também detinha o poder econômico e político na região)”, disse ele. “O Rio Grande do Norte vive o sétimo ano sem chover direito e ninguém precisa mendigar uma lata d´água. Através da ASA, a seca não nos faz mais refém.”

Agnaldo é da Chapada do Apodi, um território localizado sobre dois aquíferos, o Açú e a o Jandaíra, e bastante explorado pelo agronegócio para produção de frutas para exportação a base de muito veneno, que prejudica o acesso das famílias à água. Um dos exemplos disso é a barragem de Santa Cruz, cujas águas são reservadas para os perímetros irrigados e proibidas para as comunidades distantes apenas dois e três quilômetros do corpo d´água. Nessa mesma região, também há experiências de gestão da água por associações comunitárias que começaram na década de 1980 por incentivo da Igreja Católica. Estes Sistemas de Abastecimentos de Água Comunitária, como são conhecidos, testemunham a luta e a coragem da população local para resistir à privatização da água pelo agronegócio e se manter no local em que vivem há gerações.

Se Agnaldo está levando histórias de conflitos pela água e de organização comunitária para gestão deste recurso também vai escutar outras com o mesmo teor mudando o endereço para El Salvador e Guatemala. E ele tem consciência disso. “São lutas com muitos aspectos em comum e que, por isso, transcendem as fronteiras geográficas dos países”.

Da cidade de Remígio, na região Agreste da Paraíba, quem vai é Gizelda Lopes, integrante do movimento de mulheres rurais, sindicalista e agricultora familiar agroecológica com muita consciência do modelo de desenvolvimento que defende e das ameaças que sofre por defender a terra, a biodiversidade e uma agricultura saudável. “A gente está na disputa entre nosso modelo da agricultura familiar com base na agroecologia e o modelo do agronegócio, que cada vez mais deixa a vida da Mãe Natureza e Mãe Terra nua e doente. Isso é peso. As nossas experiências são o contrário, elas têm, cada vez mais, fortalecido a natureza a partir da rearborização das propriedades, fortalecendo a vida naquele ambiente”, assegura.

Gizelda comenta que intercâmbios entre agricultores e agricultoras são sempre ações com grande potência não só para melhorar as práticas agrícolas. “A gente amplia nossa capacidade de produzir, de reorganizar o lugar onde a gente mora, de deixar aquele lugar vivo a partir destas experiências de convivência numa região em que chove pouco e não tem sido fácil.”

Uma das capacidades que a ASA tem para compartilhar com as regiões secas do planeta é a sua experiência em sistematizar o conhecimento popular para transformá-las em políticas públicas de convivência com o Semiárido | Foto: Hugo de Lima

Segundo Antônio Barbosa, coordenador de dois programas da ASA e também participante do intercâmbio, o impacto ambiental da ação da Articulação, assim como a capacidade de organização da sociedade civil para influenciar, construir e executar políticas públicas para a convivência com o Semiárido, são dimensões que despertaram o interesse da FAO.

A ASA reconhece que sua capacidade de sistematizar experiências locais, nascidas do conhecimento popular, para transformá-las em ações com abrangência bem mais ampla, é algo a ser compartilhado com a sociedade civil de outras regiões semiáridas. Ao sistematizar estas experiências, é possível influenciar e construir políticas públicas a serem executadas com recursos públicos.

“O Semiárido brasileiro passou, nos últimos anos, por um processo de mudança estrutural e também de conquista de alguns marcos legais, como a lei das Cisternas. Atualmente, há mais de um milhão de cisternas de água para consumo humano e mais de 700 mil tecnologias que acumulam água para produção de alimentos e criação animal. Por mais retrocesso que possa haver com relação à agricultura familiar, essa malha hídrica descentralizada não vai permitir que voltemos à situação anterior com milhões de mortes durante as secas”, pontua Barbosa.

Localização do Corredor Seco | Fonte: Agência IPS

Potenciais do Corredor Seco – Para resistir e combater a pobreza e a fome, os campesinos e campesinas da América Central desenvolveram um conjunto de experiências locais de gestão da água, que atestam um alto nível de organização social. É dessa região a metodologia “Campesino a Campesina”, que foi criada para fazer frente à destruição provocada pela Revolução Verde.

É uma metodologia que busca a revalorização do conhecimento dos camponeses, que reconhece a condição de desigualdade que vivem as mulheres e os jovens, e que valoriza o conhecimento construído através da prática, da vida. “É uma metodologia que se baseia no ditado chinês que diz assim: O que eu ouço, esqueço. O que falo, lembro. O que faço, sei”, comenta Barbosa.

No método Campesino a Campesina, o lugar da voz pertence ao agricultor e à agricultora. São eles/as que falam sobre suas vidas e seus modos de produção. Lá os técnicos das organizações de apoio à agricultura campesina assumem o papel de facilitar a construção de conhecimentos, mas não o da centralidade da fala.

Essa metodologia influenciou a própria ASA no início dos anos 2000, quando uma pequena delegação da ASA Paraíba foi à Nicarágua e se espantou com a capacidade de fala dos agricultores e agricultoras de lá. Na volta ao Brasil, iniciaram uma mudança no papel da assessoria técnica, que passou a democratizar o poder da fala com os sujeitos do campo. Esse processo se espalhou - de forma não linear e heterogênea - pelos demais estados da ASA Brasil.

Além disso, a população do Corredor Seco tem inúmeras tecnologias sociais que surgem das inovações locais. E, outro elemento importante para entender a região, é o índice pluviométrico - entre 1,4 mil mm a 1,8 mil mm/ano. Na verdade, trata-se de um território com clima subúmido-seco. “Mas, apesar da oferta de água, é uma região cuja imagem foi estigmatizada pela escassez de água. Assim como o Semiárido brasileiro”, atesta Barbosa, contando que o trabalho de desconstrução desta imagem única deve ser feita na América Central a exemplo do que houve (e ainda há) no Brasil.

ASA e FAO – A visita dos brasileiros aos hermanos da América Central é a primeira das várias atividades planejadas no acordo de cooperação entre a ASA e a FAO. Ainda em 2018, estão previstos outros intercâmbios no Semiárido brasileiro e na América Central. Além das famílias agricultoras, a ASA e a FAO pretendem envolver outros sujeitos políticos nesta troca de conhecimentos, como gestores públicos, privados e de organizações da sociedade civil.

Na parceria entre a ASA e a FAO, também está prevista a aproximação entre o Semiárido brasileiro e a região do Sahel, uma faixa do continente africano situada abaixo do deserto do Saara, com altos índices de mortalidade infantil e fome. Devido à complexidade social dos 14 países localizados no Sahel, muitos deles com guerra civil e afetados por movimentos migratórios de sua população para a Europa, ainda está sendo desenhada a forma de contribuição da ASA àquela realidade, bem como sendo identificados os países para participar do intercâmbio com o Brasil.