Trabalho Escravo
24.11.2017
Investidas contra a dignidade humana no trabalho avançam no legislativo brasileiro

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Por Hugo de Lima - Asacom

Romeu Cardoso, o Nequinha, foi submetido ao trabalho análogo à escravidão quando criança. | Foto: Hugo de Lima / Asacom

Em 1972, empregados de um fazendeiro na Amazônia estacionaram na altura do Brejo dos Crioulos, uma comunidade quilombola rural situada entre os municípios de São João da Ponte e Varzelândia, no Norte de Minas Gerais, região do Semiárido mineiro. Ali prometeram emprego e renda na terra longínqua para os moradores que, em uma situação de vulnerabilidade social, aceitaram desbravar a chance para uma mudança de vida de suas famílias. A proposta tentadora levou 21 homens, entre adultos, idosos, adolescentes e até crianças a subirem num caminhão “pau-de-arara” rumo à grande floresta.

Não tardou até perceberem o que estava acontecendo. A esperança se cobriu de medo do mesmo jeito que foram encaminhados à região - cobertos por uma grossa lona, “envelopados” contra as fiscalizações. Seguiram por um mês de viagem. No caminho eram obrigados a fazer suas necessidades fisiológicas no mato, em estradas escondidas do policiamento. Para isso, eram amarrados e acompanhados por “jagunços” armados que os ameaçavam o tempo todo. Romeu Cardoso, aos 11 anos de idade, era um desses trabalhadores.

Romeu, conhecido como Nequinha, nos contou que durante quase todo o tempo da viagem ficavam amarrados uns aos outros. Já na fazenda, também dormiam amarrados. Lá, eles eram obrigados a cortar e levantar toras de madeira mais pesadas do que aguentavam para “limpar” a floresta ao abrir caminho para as atividades agrárias, dentre outras situações degradantes e de violência. “Uma madeira que era pra dois panhar, um sozinho tinha que panhar; não tinha hora marcada de se alimentar, o que tivesse pra comer todo mundo tinha que experimentar, até comida de porco.” e Nequinha completa: “se um batesse… todos tinha que bater nele, pra aprender.”

As fugas começaram em seguida. Foram dois que, segundo Romeu, nunca chegaram de volta ao Brejo. Um terceiro deles morreu na própria fazenda. Logo em seguida, com mais ou menos dois meses de trabalhos forçados, eles foram libertados em uma fiscalização e levados de volta pelo próprio fazendeiro, que seguiu impune. Os homens do Brejo foram levados até o meio do caminho e tiveram que mendigar para poder atravessar de balsa e seguir viagem.

No Semiárido brasileiro, o caso do mineiro Romeu não é nem único, nem minoria! Dois outros estados da região estão entre os maiores “exportadores” de trabalhadores com condições desumanas do território brasileiro. Do Maranhão, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, saem cerca de 24% de todos os trabalhadores resgatados. Da Bahia, 9,4%. Já Minas Gerais aparece em quarto lugar, com 8,3% do total. Em sua grande maioria são homens (95%), do meio rural, levados principalmente para o trabalho na pecuária, em lavouras ou em carvoarias localizadas principalmente no estado do Pará.

Conceito brasileiro - A história de Romeu é a descrição do ciclo do trabalho análogo à escravidão, segundo a Ong Repórter Brasil . Começa com a ilusória oferta de emprego para as populações mais pobres, que são levadas de suas regiões para áreas onde não conseguem pedir ajuda, coagidas por pessoas armadas e em situações de extrema violência, sobrevivem às situações desumanas. Diz-se trabalho análogo à escravidão porque, no Brasil, a escravidão legal foi “abolida” com leis que datam do império.

Ainda segundo a Ong Repórter Brasil, observando o artigo 149 do Código Penal brasileiro, de 1940, “são elementos que caracterizam o trabalho análogo ao de escravo: condições degradantes de trabalho (incompatíveis com a dignidade humana, caracterizadas pela violação de direitos fundamentais coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador), jornada exaustiva (em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de trabalho que acarreta a danos à sua saúde ou risco de vida), trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele).”

Todos esses elementos não precisam vir juntos para caracterizar o trabalho análogo ao escravo. A falta de dignidade no trabalho já basta para caracterizar essa situação. Esse conceito brasileiro foi construído durante décadas e é reconhecido mundialmente pela Organização Internacional do Trabalho e pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Por anos, a legislação do país foi aprimorada para, por exemplo, divulgar uma “lista suja” de empregadores que exploram de alguma forma o trabalho análogo à escravidão serve de base jurídica para acesso a crédito, contratos e editais em várias instâncias, públicas e privadas. A maior parte dos nomes, de pessoas jurídicas ou físicas, são negócios nas áreas agroindustriais, na construção civil e na indústria têxtil.

No entanto, não são poucas as investidas contra o conceito e os processos atuais de punição ao trabalho escravo promovidas pela bancada ruralista no Congresso. Em uma situação descrita pelo diretor da Ong Repórter Brasil, o jornalista Leonardo Sakamoto, o governo federal, por meio de uma portaria publicada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social reconfigurou a noção de trabalho análogo à escravidão à condição de cerceamento de liberdade como “um agrado às empresas do setor da construção civil responsabilizadas por trabalho escravo e à bancada ruralista”. Se estivesse válida, as condições de trabalho degradantes da dignidade humana não ofereceriam, por si só, respaldo para se caracterizar como o crime, de acordo com o Código Penal. O efeito da portaria, publicada no dia 16 de outubro, foi suspenso por decisão liminar da Ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber em um pedido da Rede Sustentabilidade.

Para o assessor jurídico da Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais (Contar), Carlos Eduardo Chaves, “esse governo quando entrou assumiu uma série de compromissos [junto aos empresários ruralistas]”. Para Chaves, a bancada ruralista “não aceita que você viva num país sem o uso de trabalho escravo - ela quer que o estado reconheça como legais situações que são degradantes e desumanas de trabalho”.

Carlos explica ainda que, “primeiro, o Ministério Público ingressou com uma ação para que o governo divulgasse a “lista suja” [que o governo demorou a publicar], e o Ministério do Trabalho, ao invés de primar por melhores condições de trabalho e divulgar essa lista, resolveu recorrer da decisão; ainda, o governo montou um grupo de trabalho no primeiro semestre deste ano formado por grandes representantes do poder econômico, como associações como a CNA e a CNI, para discutir a portaria e o conceito de trabalho escravo. Apesar de ser uma portaria que deveria ter sido construída de forma interministerial, o Ministro do Trabalho assumiu sozinho e excluiu a Contag, a Contar e a própria Conatrae (Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo). Algumas centrais sindicais sérias que faziam parte do grupo abandonaram o processo. Cada vez mais escandaloso, esse grupo não foi pra frente e se tornou inviável, também pela pressão de entidades que lutam contra o trabalho escravo. Depois que esse grupo se desfez, nós criamos um grupo de trabalho dentro da Conatrae, chamando inclusive entidades patronais, quando enfrentamos uma falta de verba e isso parou os trabalhos de enfrentamento ao trabalho escravo.”

Com a segunda denúncia realizada pela Procuradoria Geral da República, Carlos Chaves lembra que houve a suspeita (divulgada amplamente pela imprensa na época) , de que a bancada ruralista atrelou seu apoio ao Presidente da República em troca da demissão de André Roston, responsável pela investigação de casos de trabalho em condições análogas à escravidão, exoneração que de fato ocorreu alguns dias antes da publicação da portaria pelo Ministério do Trabalho que tentou mudar o conceito e a fiscalização do crime.

Condenação por trabalho análogo ao escravo - Recentemente, um colegiado de juízes ratificou uma condenação em primeira instância junto à empresa produtora de artigos de vestuário M. Officer. A empresa, segundo a denúncia, contratava peças detalhadas a fornecedores terceiros que produziam praticamente de forma exclusiva para a empresa. Esses terceirizados promoviam condições de trabalho degradantes aos seus contratados. Pela decisão, que ainda cabe recurso, a empresa será banida do comércio de São Paulo por dez anos, através da suspensão de seu cadastro de contribuinte no ICMS. A condenação é um marco no combate ao trabalho escravo no Brasil.