Entrevista
17.11.2017
Um outro mundo é possível e está sendo construído pelas mulheres

Voltar


Por Verônica Pragana* e Nelzilane Oliveira**

Gema Esmeraldo: As mulheres estão apontando para outros caminhos | Foto: Ellen Dias

Neste mundo marcado pela exploração dos excluídos que vivem nas periferias das cidades e nas zonas rurais, as mulheres auto-organizadas ascendem como um sujeito social que questiona elementos estruturantes do modelo capitalista ao por em xeque a cultura patriarcal.

Segundo Gema Esmeraldo, professora, pesquisadora, estudiosa do feminismo e coordenadora do Núcleo de Estudos e Experiências em Agroecologia da Universidade Federal do Ceará (UFCE), à medida que as mulheres reagem a este projeto de sociedade que as invisibiliza, que nega a elas uma posição social, e buscam um reconhecimento e a construção de suas falas, elas lutam por um novo projeto de sociedade.

Gema afirma que a auto-organização - pautada nos valores da solidariedade e coletividade - e o reconhecimento de seu papel social são uma força potencializadora para uma forma de vida e de produção que se contrapõe à lógica individualista do capitalismo, mesmo diante da ofensiva neocapitalista que orienta a cartilha do Governo Federal.
“Há um outro mundo se construindo aí. A gente talvez nem faça uma leitura muito clara de onde vai dar isso, mas eu vejo que estas mulheres estão apontando para outros caminhos”, profetiza a professora.


Como foi olhar para o Movimento Feminista a partir do método usado por Marx para estudar e analisar o capitalismo?
Apesar do Marx não ter estudado as mulheres ou ter construído uma obra voltada para as mulheres, a sua obra que faz uma reflexão sobre a opressão da classe trabalhadora e o método que constrói para interpretar essa realidade da exploração do capital é muito importante pra gente. Por quê? Na medida em que a gente começa a pensar [a partir destas] quatro categorias importantes [no método de análise Marxista]: a categoria da historicidade, ou seja, reconhecer que há todo um processo histórico que precisa ser pensado e refletido; a ideia da totalidade, ou seja, pensar a vida, a sociedade, a história numa perspectiva de que ele não é feita de pedaços, mas esses pedaços compõem o todo; pensar a outra categoria que é da contradição, que é muito forte no método de Marx, ou seja, a sociedade existe a partir das contradições, das oposições, dos interesses diferentes; e a quarta categoria que é a da superação.

Então, o que quero dizer é que nós mulheres, nós feministas, nós que estamos também no campo dos estudos e pesquisas feministas podemos nos beneficiar com o uso destas quatro categorias para interpretar a realidade do nosso ponto de vista também, da inclusão das mulheres na classe trabalhadora.


Qual a sua principal descoberta a partir deste olhar?

De que nós podemos perceber a presença da mulher dentro da classe trabalhadora enquanto uma presença obscurecida, invisibilizada na história. No momento em que pego a categoria da historicidade, onde está a mulher na história construída pelos dominadores? Nem só pelos dominadores, mas também na história construída pelos movimentos sociais, movimentos sindicais. Eles não colocaram a mulher nesta história. Então, pensar a historicidade do ponto de vista das mulheres é pensar uma outra história que não foi contada.

Esse aprendizado de dialogar com as categorias Marxistas nos ajuda a colocar a mulher no campo da história e no campo de relações sociais que a invisibilizaram.
Na categoria das contradições, gente, as contradições estão permanentemente colocadas nas relações cotidianas. Um exemplo: a mulher não pode ir para o espaço público, a mulher não pode assumir um espaço político, a mulher não pode, a mulher não pode..., ou seja, isso é uma contradição da sociedade. Por que a sociedade permite apenas que um sujeito social tenha trânsito nos espaços institucionais e da política e a mulher não tenha?

Pensar estas contradições é pensar, por exemplo, os outros sistemas que se conectam. E aí estou falando do patriarcado, enquanto um sistema que não está [posto] claramente quando eu dialogo com o sistema capitalista, mas ele é um sistema forte de dominação do capitalismo.

O outro elemento é o da superação. À medida que a mulher reage a este projeto de sociedade que a invisibiliza, que nega uma finalidade social, uma posição social, à medida que essa mulher busca um reconhecimento na sociedade, busca se recolocar em organizações para construir uma fala e construir um projeto político de sociedade e se constituir como um sujeito social e político, essa mulher também está lidando com aquilo que a gente chama de projeto de mudança, de transformação, que é o que o Marx traz como a categoria da superação.


Quais os principais marcos desta trajetória de auto-organização das mulheres?
Eu vejo como as mulheres procurando primeiro identificar porque não são reconhecidas na sociedade, no espaço público e no espaço político. Se a gente começar a se remeter desde as primeiras lutas das mulheres, elas vão buscar estudar, porque não tinham direito de estudar, essas mulheres vão buscar votar, ter uma presença e participação política através do voto, minimamente, votar e ser votada. Nós vamos ter o projeto das mulheres buscando ter uma auto-organização para que elas possam desempenhar papéis políticos e, neste sentido, construir também um olhar da sociedade sobre as suas necessidades e seus interesses.

Nós vamos ter também uma luta pra que elas possam ter uma autonomia econômica. Nós vamos ter, ao longo da constituição da história, uma busca organizativa das mulheres para que elas, primeiro, se constituam como sujeitos sociais e políticos. Esta constituição, que vem de dentro, é individual e [também] coletiva.

Nesse processo de busca deste autorreconhecimento, de que ela existe enquanto sujeito social, ela busca então direitos de participação na produção destas riquezas. Então, eu quero salários iguais, quero estar em todos os espaços de produção e o espaço político, fundamentalmente, de decisão das políticas.

Então, eu vejo este processo de auto-organização como um processo permanente, aonde todos estes elementos se dão concomitantemente. Não posso te dizer que as mulheres vão buscar um reconhecimento político independente do reconhecimento econômico. As mulheres têm um processo onde essas diferentes lutas caminham paralelamente de acordo inclusive com a posição das mulheres. Você tem, por exemplo, a posição das mulheres rurais em relação à luta por direitos numa situação diferenciada das mulheres urbanas. As reivindicações são diferentes. Essa trajetória há que se pensar a partir do lugar destas mulheres. As indígenas já têm outras reivindicações.

Mas, pra mim, o que acho que é fundante, é a busca do reconhecimento do ser mulher enquanto ser social e político. Esse é o ponto de partida para a auto-organização das mulheres.


Como a senhora percebe o movimento de mulheres nesta atual conjuntura de uma ofensiva neoliberal?
Eu acho que as mulheres têm um acúmulo muito grande em termos de um processo organizativo, em termos de atuação em rede, em termos de valorização dos seus conhecimentos, em termos de estar trazendo para a sociedade, inclusive a urbana, um outro projeto de sociedade, apontar para outro projeto de sociedade. Neste sentido, esta ofensiva que o capitalismo está trazendo para estas mulheres, que vai se concretizar na redução do atendimento das reivindicações no campo das políticas públicas, já que o Estado está alinhado com este projeto neoliberal e é responsável pela implantação e implementação de políticas públicas, vejo recuo neste aspecto, inclusive, na eliminação das políticas conquistadas pelas mulheres, a gente está vendo os pacotes aí.

Por outro lado, acho que as mulheres se fortaleceram nos últimos 10-15 anos em termos de auto-organização e de reconhecimento de seu papel social e isso, no meu entendimento, é uma força potencializadora importante para as mulheres irem pras ruas, fazerem a defesa de seus direitos e garantirem uma forma de vida e de produção diferenciada nos seus territórios. Garantir uma resistência nos seus territórios em função deste processo e deste projeto de sociedade que elas estão construindo nos territórios.

Estou falando de um domínio que as mulheres têm do sistema agroalimentar da agricultura familiar. Nesse domínio dos saberes, das práticas, de tecnologias, da comercialização, da força destes alimentos produzidos por estas mulheres e elas fazem a transformação destes alimentos. Elas consomem, têm o conhecimento de que são alimentos saudáveis, que garantem a segurança alimentar. Então, esse domínio de toda esta cadeia produtiva faz com as mulheres tenham um poder importante. Eu tenho tentado dialogar com elas neste sentido: ‘Gente, vocês têm um poder muito importante’, que é um poder de um processo de produção de alimentos que vai na contramão de um outro projeto agroalimentar do agronegócio, que está completamente segmentado. Um segmento produz, o outro distribui, o outro comercializa, o outro transforma. Então, essa diferença entre o projeto destas mulheres, que vou chamar de agroecológico, e o projeto do agronegócio, na minha leitura, tem uma força muito grande das mulheres.

Eu vejo que esta ofensiva é uma ofensiva relativa, na medida em que as mulheres construíram uma base organizativa, inclusive, na compreensão também da sua força produtiva de alimentos saudáveis, de segurança alimentar.


Quais os sinais que indicam que a gente está em outro momento?
Um primeiro sinal é a construção de valores relacionados aos processos de auto-organização. Ao mesmo tempo que o capitalismo estimula o valor do individualismo, o valor da autonomia, principalmente no campo financeiro, mas muito voltado para cada pessoa em sua busca de sobrevivência, as mulheres organizadas têm nos trazido lições e valores que têm sido fundamentais para nos trazer uma perspectiva de uma sociedade humanitária e não uma sociedade de mercado. Que valores são esses? O valor de solidariedade, o valor do compartilhamento de saberes, o valor da troca experiências de dor e sofrimento. Essas mulheres têm trazido pra gente depoimentos de experiências que estão indo na contramão do neoliberalismo e capitalismo. As práticas de feiras agroecológicas são interessantíssimas porque as mulheres levam seus produtos e compartilham inclusive com outras mulheres mudas, sementes... As casas de sementes são outro exemplo de como você tem outros valores sendo exercitados por estas mulheres. Então, há um outro mundo se construindo aí. A gente talvez nem faça uma leitura muito clara de onde vai dar isso, mas eu vejo que estas mulheres estão apontando para outros caminhos.


Quer acrescentar algo?
Eu vejo também que este encontro traz pra gente a possibilidade de pensar que essas mulheres têm tido uma preocupação no âmbito econômico, no âmbito político, mas também no familiar, no sentido de construir outras relações conjugais e com os filhos. Por exemplo, a ideia de pensar a campanha Divisão Justa do Trabalho Doméstico como um instrumento importante para fazer essa discussão não só a nível das instituições que fazem essa divisão, mas no âmbito familiar para alterar esse entendimento do que seja trabalho produtivo do que seja trabalho reprodutivo, isso é revolucionário na nossa sociedade capitalista que não valoriza monetariamente o trabalho doméstico. E essas mulheres estão, de novo, na vanguarda. As mulheres rurais, é importante destacar. Novamente, estão trazendo mais uma vez um elemento de questionamento de uma sociedade patriarcal, desigual, capitalista. A divisão do trabalho doméstico não surge no capitalismo, ela continua e se intensifica no capitalismo.

As mulheres têm trazido para o debate questões estruturantes do modelo capitalista e patriarcal. Acho fantástico, inclusive, para o feminismo urbano aprender porque possivelmente nem faz esta discussão – da divisão justa do trabalho doméstico – no âmbito familiar.

Outra coisa muito importante que estas mulheres têm nos ensinado é que não é tão importante a escolarização prum aprendizado e formação pra vida, pra elas se colocarem enquanto sujeitos políticos. Na medida em que elas exercitam, isso é uma metodologia fantástica, a fala a partir dos seus depoimentos e suas experiências, elas estão aprendendo umas com as outras. Isso é precioso enquanto método de aprendizado de autorreconhecimento porque eu me vejo na outra, a outra se vê no meu depoimento, e eu ressignifico e reelaboro as minhas práticas e construo também uma consciência de mim e uma consciência enquanto coletivo.

* da Asacom
** do Fórum Cearense pela Vida no Semiárido