Festa das Sementes da Paixão
16.10.2017 PB
Resistência para salvaguardar as sementes crioulas e a democracia

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Por Verônica Pragana - Asacom

Na inauguração do banco de sementes de Canudos | Foto: Juliana Michelle

“Sempre me senti desafiado a ser exceção”, diz Diógenes, um homem nascido numa pequena comunidade rural no semiárido da Paraíba que, na juventude - como a grande maioria dos jovens deste espaço - migrou para centros urbanos e, um dia, resolveu voltar e permanecer na sua comunidade. “O sistema é todo montado para não sermos agricultores. Quando saímos das comunidades, que são exportadoras de mão de obra, raramente voltamos. Pra voltar, tem que saber o que quer, ter muita fé e ser muito forte. E para se manter aqui é preciso ter altivez de voz e de pensamento”, arremata ele, afirmando que é preciso resistir para enfrentar a lógica predominante: “Se nos movermos pela lógica do capital, deixamos de ser humanos. O sistema é perverso, pesado e bruto”.

O discurso espontâneo de Diógenes Fernandes do Nascimento foi feito na comunidade de Canudos, a 21 quilômetros do centro de Boqueirão, na Paraíba, no dia da inauguração do banco de sementes comunitário e municipal. Talvez, o nome emblemático da comunidade o tenha motivado a falar sobre resistência. Há pouco mais de 120 anos, no Semiárido baiano, uma outra Canudos agrupou milhares de pessoas pobres que resistiram ao poder dominante e explorador e, com base numa organização social justa e solidária, criaram prosperidade no local onde viviam e resistiram, inclusive, aos ataques do exército antes da comunidade ser dizimada.

A resistência presente tanto nas escolhas conscientes de Diógenes, quanto na força do nome da comunidade e na sua história, também é um traço comum entre os visitantes do novo banco de sementes. Os visitantes são, em sua maioria, guardiões e guardiães de sementes da paixão de várias regiões semiáridas da Paraíba que participavam da 7ª Festa Estadual das Sementes da Paixão, realizada de quinta a sábado da semana passada (5 a 7), em Boqueirão.

Guardar, multiplicar e trocar as sementes da paixão é um ato de ousadia muito maior do que se pode imaginar. Quem é guardião e guardiã contribui para ampliar a resistência da agricultura familiar do Semiárido ao poderio econômico e político das empresas de sementes transgênicas e agrotóxicos, como a Syngenta e a Monsanto.

A tarefa é grandiosa e, no cenário atual do Semiárido paraibano, algumas sementes de milho crioulo já foram contaminadas pelas transgênicas que entraram no Semiárido há, mais ou menos dois anos, quando a seca já atingia seu terceiro ano consecutivo e algumas famílias tinham perdido seus estoques. Segundo a Rede de Sementes da ASA Paraíba, a porta de entrada da variedade transgênica foram as lojas de produtos agropecuários e a Conab, que distribuiu milho transgênico para alimentação animal, mas que foi usada para plantio. Além disso, em 2013, a Monsanto instalou uma fábrica no coração da região Semiárida, em Petrolina (PE), um município central para toda a região. Essa fábrica produz sementes transgênicas de milho, soja, algodão, sorgo e cana-de-açúcar.

Uma das estratégias que potencializa – e muito – a proteção da agricultura familiar no Semiárido frente às sementes transgênicas é a articulação entre os bancos de sementes comunitários que foi impulsionada pelo programa Sementes do Semiárido da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). “Com poucos anos de existência, já é o maior programa de sementes crioulas apoiado pelas políticas de Estado no Brasil. Permitiu a constituição de uma grande Rede de Sementes do Semiárido, aglutinando, fortalecendo e ampliando as várias redes de casas e bancos de nove estados que compõem a região”, afirma um trecho da Carta Política da 7ª Festa Estadual das Sementes da Paixão.

Resistir para permanecer na comunidade, resistir para manter vivas as sementes crioulas, resistir aos períodos de estiagem... Para viver no Semiárido é preciso aprender a conjugar a resistência diária. E foi, justamente, esta habilidade que Naidison Quintella, da coordenação executiva da ASA Brasil, se referiu na mesa de encerramento da Festa ao falar do momento político que o Brasil enfrenta. “O momento não é ‘de acabou’. Vamos virar a mesa das políticas que massacram a agricultura familiar. Vamos construir o processo de direitos. Levem com vocês a resistência. Levem com vocês a certeza de que a nossa proposta de uma sociedade justa, inclusiva e livre de transgênicos está viva! Esta festa é um sinal disto”, anunciou Naidison para mais de 800 pessoas que escutavam atentas esse momento do evento que ficou na história da agricultura familiar da Paraíba.