Comunidades Tradicionais
09.06.2017
“Se as comunidades tradicionais não se aliarem, vai ser o maior genocídio de um povo”, alerta Hilário Xakriabá

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Por Gleiceani Nogueira - ASACom

Para Hilário Xakribá a única herança de um povo é a luta| Foto: Acervo DGM/CAA Valda Nogueira/imagens Humanas
No mês de maio, em meio a muita polêmica e agravamento da crise política com o escândalo de corrupção envolvendo o presidente da República, foi aprovado o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Funai/Incra, que prevê mudanças no procedimento de demarcação das terras indígenas e o indiciamento de 67 pessoas ligadas a causa indígena no País, como índios, antropólogos e religiosos. A Comissão, criada em novembro do ano passado, tem como relator o deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, e se propôs a investigar fraudes nos processos de demarcação e na aplicação de recursos destinados as tribos, assentamentos e comunidades quilombolas.  

Em nota, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) repudiou o relatório da CPI da Funai/Incra, destacando preocupação com a extinção da Funai, cujo presidente atual é o general do Exército Franklimberg Ribeiro de Freitas, e com mudanças no procedimento de demarcação das terras indígenas que ignora critérios já definidos pela Constituição Federal. “Trata-se de uma CPI criada, conduzida e relatada por ruralistas para atender os interesses ruralistas e atacar os povos originários, seus direitos e aliados junto à sociedade brasileira”, diz um trecho do documento. (Veja a nota completa aqui)

Para o Conselho e outros movimentos ligados aos direitos humanos, a CPI também vai agravar a violência contra os povos indígenas, quilombolas e camponeses, que são as principais vítimas dos conflitos agrários envolvendo fazendeiros e seus jagunços. Entre os casos mais recentes estão os massacres de Caarapó, no Mato Grosso do Sul, contra os Guarani Kaiowá, de Colniza, no Mato Grosso, contra camponeses, e dos índios Gamela, no Maranhão.

Além da CPI da Funai-Incra há outras propostas em tramitação no Congresso que visam enfraquecer a legislação ambiental e os direitos dos indígenas, quilombolas e outros povos tradicionais. Entre elas, a Proposta de Emenda Constitucional 215/00, que transfere do Executivo para o Legislativo o controle das demarcações, a Portaria 80/17, que prevê a revisão de processos de terras já demarcadas e a MP 759, que prioriza a titulação privada de terras desapropriadas para fins de reforma agrária, o que permitirá a reconcentração destas terras, inclusive por estrangeiros. No artigo Ameaça de Desnacionalização, o secretário-executivo do CIMI , Cleber César Buzatto, denuncia as artimanhas da bancara ruralista para se apropriar e privatizar o território brasileiro visando os investidores internacionais. 

Para falar sobre os impactos dessas propostas e da crise política para os povos indígenas, a assessoria de Comunicação da ASA (ASACom), entrevistou o indígena Hilário Xakriabá, que também é integrante da Articulação Rosalino Gomes de Povos e Comunidades Tradicionais e membro da diretoria do CAA/NM (Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas Gerais).  A tribo Xakriabá fica localizada nos municípios de São João das Missões e Itacarambi, no Norte do estado, região de Semiárido. Hilário aponta a união dos povos tradicionais e o trabalho com a juventude como as principais saídas para enfrentar esse cenário de retrocessos de direitos. Confira a entrevista:

ASACom - Qual o impacto da crise política para os povos indígenas?

Hilário Xakriabá - Para nós povos indígenas não é diferente claro da visão geral das comunidades tradicionais, mas a gente tem em mente que principalmente para os povos indígenas, através da Constituição de 1988, há muitos direitos que antes não eram garantidos e a custa de suor e sangue, de morte mesmo dos nossos antepassados que já se foram, e de muitas pessoas que estão aí na luta, a gente teve alguns avanços. Avanços esses que nós estávamos ainda engatinhando, tentando tirar o que tem da Constituição que nos favorece, algo que poderia avançar no campo dos diretos. Mas aí com essa crise política, que a elite causou, que na verdade nós não tínhamos uma crise política, nós tínhamos uma crise financeira que não era só brasileira, ela vinha em nível mundial.  E daí a elite não contente com o fato de alguns avanços [que tivemos] com alguns governos atuais que vinham nos favorecendo de certa forma, acabou que eles aproveitaram da crise financeira para causar essa crise política que tanto interessava a eles. Tanto é que eles estão se aproveitando e estão avançando. Então as leis que estão postas aí são favoráveis aos grandes latifúndios, ao agronegócio. Para nós indígenas, nesse olhar de povos, temos a compreensão que tá regredindo nos nossos direitos que vinham engatinhando e buscando se aperfeiçoar. Então na minha opinião, essa crise política, em que acaba a gente sendo vítima, foi causada por eles mesmos para nos fragilizar e eles avançarem com seus interesses.

ASACom - A quem interessa esse conjunto de medidas nas leis brasileiras como a MP 759, que compromete a reforma agrária, e a CPI da Funai-Incra, que criminaliza indígenas, antropólogos e religiosos?

Hilário Xakriabá - Estão sucateando toda a Funai e com essa CPI é justamente isso, fragilizando um trabalho sério de antropologia, eles não estão levando em consideração mais o histórico de um povo, pra eles o que manda hoje é o agronegócio. Com certeza essas leis vão trazer um prejuízo muito grande. Inclusive de aumento da violência. Há mais de 300 homicídios dentro de alguns meses, que foi levantado na nossa região, e que estão impunes. Parece que só oito ou nove deles, eu não me recordo agora, foram punidos. O resto tá esquecido no tempo. Então a impunidade é muito grande e a tendência é crescer por tudo que vem acontecendo. Penso eu que se não houver um olhar mais de justiça pra essa questão, a tendência é aumentar a cada dia. E se nós não nos aliarmos mesmo, não só como povos indígenas, mas se as comunidades tradicionais não se aliarem numa luta só, de fazer um enfretamento maior, vai ser o maior genocídio de um povo, incluindo ai também os povos quilombolas que vêm também engatinhando pelos seus direitos. Então para nós o futuro que se apresenta é triste, é muito ruim, muito preocupante. A gente tá se preocupando sim, tá buscando formas de se aliar, por isso, nessa região também aqui do Norte de Minas, a gente criou uma articulação chamada Articulação Rosalino Gomes de Povo e Comunidades Tradicionais que leva inclusive o nome de um mártir que, na época da ditadura militar, foi assinado junto com outros xakriabás e hoje essa articulação leva esse nome em memoria dessa pessoa guerreira que se foi, foi um adubo pra nosso território, pra nós termos ganhos futuros na nossa caminhada. E essa articulação representa os sete povos da região, além de povos indígenas todas as outras comunidades tradicionais: quilombolas, vazanteiros, pescadores, geraizeiros, caatingueiro e outros mais que compõem esses setes povos. Infelizmente estamos na beira do abismo e precisamos nos aliar e buscar formas pra nós podermos avançar na nossa luta. Regredir jamais, apesar que nós estamos regredindo, mas nós não vamos recuar. 

ASACom - Como vocês têm se organizado para enfrentar essas ameaças?

Hilário Xakriabá- Uma das coisas, como eu falei, é a unificação da nossa luta. Hoje com esse retrocesso muito forte de perdas de direitos nós já começamos a olhar que os irmãos quilombolas têm uma luta parecida de direitos e por igualdade e que precisa ser vista como tal. Aí vêm as outras comunidades tradicionais que nem garantias desses direitos têm, muitas vezes não tem lei, e também estão engatinhando para lutar pelos seus direitos. Então é se aliar. Quando eu falei dessa articulação é isso, ela precisa buscar essa unificação de lutas para fazer esse enfrentamento de direitos e só assim podemos fazer um trabalho e buscar evitar esse impacto negativo maior. Uma coisa também que é um lema do nosso povo indígena, se tratando de Xakriabá, que tá se trabalhando muito, levando já como experiência para outros povos e comunidades tradicionais, é a questão da nossa juventude. A nossa juventude hoje tá muito ligada a questão tecnológica esquecendo dos nossos costumes e nossas tradições, das nossas obrigações enquanto povo. É um perigo muito grande então essa tecnologia desenfreada. Nós temos que saber usar essa arma a favor dos nossos direitos e nós estamos buscando esse potencial da nossa juventude para fortalecer a nossa luta. Não podemos ficar esperando os anciões, os caciques, lideranças antigas, pajés, que são pessoas de referência enquanto povo. Precisamos fazer um repasse dessas lutas, um repasse de conscientização, fazer as assembleias com a juventude, capacitando ela nos nossos costumes, colocado ela como peça fundamental para as nossas lutas atuais. Estamos retomando essa forma de capacitar que antes era automaticamente, pois o filho vivia ali do lado, e ia se capacitando na prática. Como eu disse, a tecnologia hoje vem tomando nosso tempo, a televisão, o celular, mas aí a gente tá querendo buscar outra forma de usar essa tecnologia ao nosso favor. Falamos sempre pra eles que a única herança que nós temos enquanto povo pra passar de geração em geração é a luta. Nós não deixamos como herança, como deixam os grandes, os gananciosos, grandes fortunas, prédios, terras. Para nós, enquanto povo, a única herança é luta, é batalha, enfretamento. Terminou a nossa necessidade por território, mas tem a nossa sustentabilidade, tem a saúde, a educação, a questão social do nosso povo e a juventude vai fazer a diferença nesse enfretamento.