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15.08.2016
"Juventude que ousa lutar constrói o poder popular”
Brasil de Fato Pernambuco*


Sucessão rural, nucleação escolar e preconceito são alguns dos desafios para a permanência de jovens no campo

 

*Fernanda Cruz, da Articulação Semiárido Brasileiro

A juventude do campo é parte estratégica da consolidação do modelo de produção agroecológico. / Manuela Cavadas
Mulher, 23 anos, agricultora com muito orgulho. É essa a expressão de Jéssica Raquel ao falar sobre seu trabalho, depois de algumas experiências vividas ao longo dos seus vinte poucos anos. O olhar dela para agricultura nem sempre foi esse. Jéssica já trabalhou como doméstica e também no comércio, como vendedora. Naquela época, a vida na cidade lhe parecia promissora.

Hoje seus olhos brilham ao falar da produção gerada num pequeno pedaço de chão, no Assentamento Queimada, em Remígio, na Paraíba. Ela não sabe ao certo o tamanho da sua terra, mas é um pedaço da área do sogro, que tem aproximadamente 2 hectares. É dessa terra que Jéssica, junto com o marido, também jovem, tira o sustento da família. A realidade dela é semelhante a de muitos jovens que desejam permanecer no campo, mas que não tem perspectiva de ter uma terra própria, levando-os a procurar outro modo de vida.

Atualmente, não há política consolidada para a sucessão rural. Ser filho ou filha de assentados, por exemplo, não significa que um dia a terra dos pais será herdada. A tendência atual é um aglomerado de pessoas da mesma família dividindo um mesmo lote, como ocorre com Jéssica. Para Jaime Amorim, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra (MST), esse é um debate novo no Brasil, mas muito importante. Ele explica que existe uma discussão sobre a titularidade dos lotes dos assentamentos e que o governo interino de Michel Temer (PMDB) quer retomar uma questão anterior a 2002, que põe em xeque a titulação definitiva, garantindo a emancipação dos assentamentos. “Trabalhamos que a terra é do Estado e que os trabalhadores devem ter o titulo de concessão com direito a herança”.

Segundo Jaime, esse é um debate essencial quando se pensa em sucessão rural. Ele ainda ressalta que essa questão fortalece também o debate sobre a reforma agrária, uma vez que os jovens que querem ficar no meio rural tem que optar por continuar lutando para por fim na estrutura agrária atual, concentradora de riquezas e, assim, garantir que as novas gerações tenham direito a um espaço para viver e produzir. “Se depender somente do Governo, a família vai ficar aglomerada no mesmo lote e isso é inviável. A juventude tem que conduzir esse processo, tem que discutir as condições de vida no campo, de infraestrutura, o fortalecimento dos aspectos culturais daquela população, ou seja, tudo que é necessário para quem faz a opção de permanecer no campo”.

São essas políticas estruturantes relacionadas à infraestrutura e à cultura e identidade do povo, essenciais para a vida em comunidade, que o Governo Temer (PMDB) vem desconstruindo ao longo do seu mandato e que contribui para a migração de jovens. “Percebemos o desmonte de políticas de incentivo à produção no meio rural, em especial à produção agroecológica e as formas de comercialização; a fragilidade cada vez maior do acesso à educação de qualidade e também a questão das escolas do campo, que estão cada vez mais sendo fechadas; além do fechamento de espaços de debate político na escola, a exemplo do [Programa] Escola sem Partido. É uma série de retrocessos que esse Governo está colocando para o país e, consequentemente, para nós, jovens”, afirma Simone Zani, da Pastoral da Juventude Rural (PJR).
 
Para o alagoano Jairã Santos, de 27 anos, pertencente à etnia Tingui Botó, é difícil que a sucessão rural ocorra sem a presença do Estado garantindo direitos básicos no campo. “A gente viu durante muito tempo um grande êxodo porque as políticas desvalorizavam o campesinato, existia uma urbanização do campo e uma mercantilização da agricultura que foram fazendo o jovem perder o orgulho de ser do campo, abandonando as raízes. Na última década isso estava se revertendo aos poucos. Mas com esse golpe, podemos ter um retrocesso”, afirma.

Ele que também cursa agronomia e é militante da Federação dos Estudantes de Agronomia (FEAB) ressalta que uma das principais perdas para a juventude é a falta de investimento na educação. “Com a ausência das políticas que existiam, como o Prouni, Pronatec, interiorização das universidades públicas e fechamento das escolas rurais, a tendência é que os jovens procurem um meio de vida na cidade”, explica ele.

Outro fator que acaba impulsionando a saída desses jovens são as novas regras para aposentadoria rural. Se aprovadas, os camponeses e camponesas só poderão se aposentar aos 70 anos de idade, sendo que começam a trabalhar ainda muito jovens, com uma carga de trabalho braçal intensa. Segundo o assessor jurídico da Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura (Contag), Evandro Morelo, “hoje, uma grande parcela das pessoas que ficam no campo, permanecem porque tem uma perspectiva de uma aposentadoria no futuro. Então, eles contribuem com a produção rural e vão ter a expectativa de se aposentar com um salário mínimo. Agora se analisarmos esta perspectiva de aumento da idade mínima [para aposentadoria] você tira a esperança desses jovens de permanecerem no campo. O desafio da sucessão rural é ter políticas públicas atrativas que incentive que as pessoas fiquem no campo”.

Em maio deste ano, a presidenta Dilma Rousseff (PT) instituiu o Decreto 8.736, que se refere à criação do Plano Nacional da Juventude e Sucessão Rural. O acesso à terra e ao território é um dos eixos da proposta, que foi construída nas conferências estaduais e nacional da juventude. No entanto, com o golpe e os desmandos do governo interino, as políticas previstas no documento não saíram do papel. Outros eixos são: garantia de trabalho e renda; acesso à educação do campo; promoção da qualidade de vida; ampliação e qualificação da participação.

Além de remar contra as inúmeras conquistas perdidas com o golpe, os e as jovens rurais ainda têm que lidar com o preconceito dos mais velhos sobre a própria situação de ser camponês, algo bastante comum. “Os agricultores e agricultoras mais velhos viveram situações de muito sofrimento em busca de uma condição mínima de vida. Era uma luta para comer, para buscar água, que são necessidades muito básicas. Por isso, muitos não desejam que os filhos e filhas permaneçam no campo porque associam essa condição ao sofrimento vivido no passado”, explica Adriana Galvão, que vem assessorando os jovens acompanhados pela AS-PTA, organização que faz parte da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA).
 
Filha e neta de agricultores familiares, Jéssica Raquel pode se considerar uma jovem de sorte porque seus pais valorizam o trabalho camponês. Mas ela reconhece que permanecer no campo exige enfrentar o tabu, como ela mesma diz, de que vida boa existe é na área urbana. “Os pais querem que os filhos estudem para ser gente e isso significa deixar o campo. A mentalidade deles [pais] é que viver da agricultura não é bom. Mas trabalhar e dar continuidade a agricultura é bom e importante. Eu sou agricultora e sou gente, sim”, diz Jéssica com veemência.

Outro caso é quando esses jovens precisam estudar fora da sua comunidade ou assentamento, muitas vezes até fora do município, ainda crianças, e precisam enfrentar o preconceito de quem vive nas cidades sobre quem é “da roça”. Embora casos como o de Jéssica sejam cada vez mais comuns, especialmente após os investimentos sociais e a auto-organização da juventude nos últimos anos, ainda é forte a migração desse grupo para as zonas urbanas. A antropóloga da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Elisa Guaraná, na tese Entre Ficar e Sair: uma etnografia da construção social da categoria jovem rural aponta que “a circulação dos filhos entre as áreas rurais e urbanas tem início na continuação dos estudos (a partir da 5a série do 1o grau) na medida em que as escolas nestas localidades só oferecem o ensino de 1a a 4a séries, e em um segundo momento, na busca de um trabalho remunerado”.
 
Jeane Carla é uma jovem agricultora do município paraibano de Remígio que vivenciou o preconceito ao ter que sair do assentamento para dar seguimento aos estudos, no início do Ensino Fundamental. “Um dia, durante a merenda, um dos meus colegas perguntou se quem morava do sítio tinha que comer de colher, porque deveria comer com a mão. Eu morava na zona rural e me senti ofendida com aquilo”, relembra. Ela também recorda que no início tinha receio de participar das aulas, “mas depois fui tendo mais confiança em mim mesma e vendo que eu tinha o mesmo potencial de todos que estavam ali”.

Atualmente, Jeane faz o curso técnico em agropecuária numa escola em Lagoa Seca. Ela destaca que apesar do que houve no passado nunca pensou em seguir outra profissão que não fosse a agricultura. “Existe muito preconceito com quem está na zona rural e muito jovem se ilude com essa propaganda de que a vida na cidade é melhor e sai da sua terra pra buscar outra coisa fora. Mas é uma ilusão. Hoje temos muitas oportunidades no campo. Fácil não é, mas quando queremos vamos quebrando as barreiras que nos impedem de seguir adiante”, defende ela, que tem um irmão que passou quatro meses em São Paulo com a expectativa de mudar de vida, mas decidiu voltar diante das dificuldades enfrentadas na metrópole.

Sem dúvida, um conjunto de políticas públicas adequadas, aliado aos espaços de construção política e auto afirmação dessa juventude interfere diretamente no desejo desses sujeitos e sujeitas continuarem vivendo no campo, tendo a agricultura como atividade principal. “Nos últimos 15 anos vimos a juventude do campo, das águas e das florestas ganhar visibilidade e se organizar lutando por melhores condições de permanência no meio rural. A educação do campo tem sido sem dúvida uma das políticas públicas mais importantes para o fortalecimento da identidade e qualificação da juventude do campo”, diz Elisa Guaraná.

Participar de reuniões e momentos de formação para juventude também foi fundamental no fortalecimento da identidade rural tanto de Jeane, quanto de Jéssica. “Tudo começou quando eu comecei a participar de umas reuniões para os jovens, que eram organizadas pelo sindicato, pela AS-PTA e pelo Polo da Borborema. A partir daí eu também comecei a participar das reuniões sobre a feira (agroecológica) e estou aqui hoje [na feira montada durante a I Marcha da Juventude Camponesa da Paraíba”, explica Jéssica.

Segundo Simone Zani, da Pastoral da Juventude Rural (PJR), “a saída para esse momento está na organização e na unidade. Isolados não vamos conseguir seguir frente a esse golpe. Precisamos ir pra rua, fazer luta e formação”.

Para Jeane, “é através dos movimentos que estamos conseguindo lutar por direitos, igualdade, liberdade e democracia. Quando todos se unem e se juntam, vamos à luta. Rosa de Luxemburgo já dizia que quem não se movimenta não sente as correntes que lhe prendem. Se existe homofobia e racismo, temos que lutar juntos porque juventude que ousa lutar constrói o poder popular, seja negro, índio, homem, mulher, agricultor ou da cidade.

O envelhecimento do campo, a ausência de um conjunto de políticas de Estado e, consequentemente, a migração dos jovens para os centros urbanos são ameaças reais à continuidade da agricultura familiar e camponesa, em especial, a de base agroecológica. Isso também é uma porta aberta para o agronegócio e pode resultar na concretização de um projeto de desenvolvimento voltado diretamente às elites e ao capital internacional.
“Vivemos um momento em ascensão na produção de alimentos saudáveis, infelizmente interrompido por um golpe que tem em seu cerne a disputa de modelo de desenvolvimento para o Brasil e deixa claro ser inconciliável o modelo da grande produção com base no agronegócio exportador, defendido pelo governo interino e os que o apoiam, e a produção da agricultura familiar”, destaca Elisa Guaraná. Ela explica que a garantia da continuidade da produção de alimentos saudáveis está diretamente vinculada a um modelo de desenvolvimento rural com base na agricultura familiar, camponesa e extrativista e no avanço da agroecologia e da convivência com nossos biomas, a exemplo do Semiárido.

Para Elisa, esse é um debate ainda distante da maior parte da população brasileira. “Ao mesmo tempo em que aumentamos muito o consumo de produtos orgânicos e de base agroecológica, ainda não está claro pra sociedade brasileira que esse alimento é fruto do trabalho da agricultura familiar. Esse é um desafio permanente! A juventude do campo, das águas e das florestas é parte estratégica nessa luta, tanto para consolidar o modelo de produção agroecológico quanto para disputar na juventude urbana e rural esse modelo de desenvolvimento”, destaca.

É com esse pensamento que diversas organizações e movimentos vêm atuando na organização e fortalecimento da juventude rural, como um caminho para minimizar as perdas e as consequentes desigualdades. De acordo com Janaína Ferraz, assessora de juventudes do Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá, organização que também compõe a ASA, já é possível colher alguns frutos a partir do empoderamento desses atores e atrizes através dessas ações. Em Pernambuco, por exemplo, existem jovens engajados em ações de preservação ambiental nas comunidades; incidindo politicamente a partir de espaços estratégicos de organização, a exemplo das associações, sindicatos e conselhos; atuando no fortalecimento de grupos de base, através da assessoria técnica direta às famílias; e, inclusive, estudando cada vez mais para qualificar o discurso e a ação.
 
Nesse sentido, algumas organizações de base agroecológica, incluindo o Centro Sabiá e a AS-PTA, estão organizando o Encontro Regional de Juventudes e Agroecologia, entre os dias 3 e 5 de novembro, na Região Metropolitana do Recife. “Queremos refletir e debater o papel das juventudes nos territórios agroecológicos. Quais as demandas, desafios e potencialidades? E a partir disso, direcionar a nossa ação objetivando o fortalecimento desses jovens que querem permanecer no campo”, conta Janaína Ferraz.

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